Mais logo numa moita...
Lá no Abacaxi, currutela de uma rua só, a muitas léguas de Tabuí, era noite de lua cheia. Tempo fresco e época de colheita. Todo mundo gente muito simples. Divertimento com aquela lua toda era uma baita festa ao som duma viola doída, uma boa sanfoninha reco-reco, um cavaquinho e um pandeiro. Cada um arranhando mais que o outro. Imitando caipiras de fama. Aqueles do rádio. Cantadores cantavam cantigas apaixonadas, com olhinhos até fechados, sonhando com sucesso fácil da cidade grande. Bem diferente de ter que enfrentar cabo de guatambu dia-a-dia.
Festa cada vez mais animada. Tanto dentro quanto fora do rancho. De terra batida. Forquilha no meio para segurar a cobertura de sapê. Lá fora só movimento. Homens e mulheres, cansados de tanto arrastar o pé e balançar o esqueleto, tomavam uma branquinha pra esquentar o peito, proseando enquanto queimavam um pitinho. Lua cheia, misturada com noite fresquinha e pinguinha, clareava e contribuíam para o bom desenrolar dos proseamentos.
Enquanto isso, no salão, lotado, dança corria solta. Rela-rela pra tudo quanto é canto. Lá no Abacaxi ninguém cuida da vida do outro. Sem futricas. Cada um faz o que acha certo, é respeitado pelo que é e pelo que faz. Mas num cantinho mais escuro, embora ninguém nem olhasse, tinha um casalzinho que garrou a dançar no comecinho da festa, assim que o sol se pôs, e não parou mais. Não parou é maneira de dizer. Porque parados, no meio do rancho, ficavam tempão danado. Agarradinhos. Coisa com coisa encostadinha e latejando.
Lá pelas tantas da madrugada, rancho abarrotado de gente, contrário do clima lá fora, calor derretia neguinho. Até tocadores deixaram de sonhar e já reclamavam. Sanfoninha espumando melecada de suor. Pandeirinho nem mais respondia à pandeiração. Só casalzinho tava nem aí. Dançava e dançava cada vez mais agarradinho, esfregando as coisas, no bem-bom, olhinhos até fechados. Queriam que o mundo acabasse em moita. Com aquela quentura toda não teve outro jeito. Rapaz garrou numa suadeira danada. Molhado dos cabelos da cabeça até a ponta do dedão do pé grande. Mocinha também. Ruge escorria naquele rostinho aveludado. Vestidinho de chita todo molhado, grudado no corpo, mostrando formas apetitosas. Músculos fortes de uma cabrocha do sertão. Assim meio tonta, resolve falar alguma coisa para o desejo contido arder menos. Abre um olhinho... O outro olhinho... Desgruda a cabecinha do peito do mancebo e diz pra ele, caprichando e dobrando a língua nos pronomes:
- Mas você sua, heim?
E o rapaz, sonhando com o mais logo numa moita, candidamente, sem nem pensar, responde rapidinho:
- E ieu tamém vô sê seu!!!...
Eurico de Andrade
2 comentários:
Obrigado pelo espaço cedido. É um prazer ter meu trabalho publicado pelo Clube dos Escritores de Alvorada.
Gostei muito, principalmente da forma movida e extasiante do conto. Conseguia quase ver cada movimento dele. Parabéns Eurico de Andrade.
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