quinta-feira, 5 de maio de 2011

Tabuí e seus causos.


Mais logo numa moita...

Lá no Abacaxi, currutela de uma rua só, a muitas léguas de Tabuí, era noite de lua cheia. Tempo fresco e época de colheita. Todo mundo gente muito simples. Divertimento com aquela lua toda era uma baita festa ao som duma viola doída, uma boa sanfoninha reco-reco, um cavaquinho e um pandeiro. Cada um arranhando mais que o outro. Imitando caipiras de fama. Aqueles do rádio. Cantadores cantavam cantigas apaixonadas, com olhinhos até fechados, sonhando com sucesso fácil da cidade grande. Bem diferente de ter que enfrentar cabo de guatambu dia-a-dia.
Festa cada vez mais animada. Tanto dentro quanto fora do rancho. De terra batida. Forquilha no meio para segurar a cobertura de sapê. Lá fora só movimento. Homens e mulheres, cansados de tanto arrastar o pé e balançar o esqueleto, tomavam uma branquinha pra esquentar o peito, proseando enquanto queimavam um pitinho. Lua cheia, misturada com noite fresquinha e pinguinha, clareava e contribuíam para o bom desenrolar dos proseamentos.
Enquanto isso, no salão, lotado, dança corria solta. Rela-rela pra tudo quanto é canto. Lá no Abacaxi ninguém cuida da vida do outro. Sem futricas. Cada um faz o que acha certo, é respeitado pelo que é e pelo que faz. Mas num cantinho mais escuro, embora ninguém nem olhasse, tinha um casalzinho que garrou a dançar no comecinho da festa, assim que o sol se pôs, e não parou mais. Não parou é maneira de dizer. Porque parados, no meio do rancho, ficavam tempão danado. Agarradinhos. Coisa com coisa encostadinha e latejando.
Lá pelas tantas da madrugada, rancho abarrotado de gente, contrário do clima lá fora, calor derretia neguinho. Até tocadores deixaram de sonhar e já reclamavam. Sanfoninha espumando melecada de suor. Pandeirinho nem mais respondia à pandeiração. Só casalzinho tava nem aí. Dançava e dançava cada vez mais agarradinho, esfregando as coisas, no bem-bom, olhinhos até fechados. Queriam que o mundo acabasse em moita. Com aquela quentura toda não teve outro jeito. Rapaz garrou numa suadeira danada. Molhado dos cabelos da cabeça até a ponta do dedão do pé grande. Mocinha também. Ruge escorria naquele rostinho aveludado. Vestidinho de chita todo molhado, grudado no corpo, mostrando formas apetitosas. Músculos fortes de uma cabrocha do sertão. Assim meio tonta, resolve falar alguma coisa para o desejo contido arder menos. Abre um olhinho... O outro olhinho... Desgruda a cabecinha do peito do mancebo e diz pra ele, caprichando e dobrando a língua nos pronomes:
- Mas você sua, heim?
E o rapaz, sonhando com o mais logo numa moita, candidamente, sem nem pensar, responde rapidinho:
- E ieu tamém vô sê seu!!!...
Eurico de Andrade

Eurico de Andrade - Nosso Parceiro de Tabuí.

Um cadim de mim.
Um menino que nasceu e começou a crescer lá no interior do interior pescando piabas, traíras e chorões no anzol e no puçá... Pegando juritis e saracuras na arapuca... Chupando ingá, gabiroba, peidorreira, baco-pari, araçá, mangaba e cagaita... Montando cavalo em pêlo... Bebendo leite direto dos peitos de vacas, éguas, cabras e ovelhas... Comendo pururuca, angu com couve e torresmo... Morrendo de medo de assombração, evitando mato para não virar comida de onça... Fazendo promessas pra São Sebastião, São Jorge e Santa Bárbara... Garrando com o chefe de tudo quanto é santo para não deixar nenhum insatisfeito... Acreditando no coisa ruim, em mal-olhado, em assombração e no saci pererê... Curando cobreiro e inflamação de aroeira com a Maria Geroma, à custa de muita Ave-Maria e fio frio da faca afiada... Educado sob a batuta do chicote e ameaças de castigo de Deus, nosso Senhor... Trabalhando como candieiro guiando carro de boi... Trabalhando como meeiro e tarefeiro no cabo da enxada... Ajudando vaca na hora do parto... Vendo a Joaninha apanhando do Zé da Ponte do Bode enquanto ele cobria de mimos e beijos a mocinha Julieta... Bebendo chá de mané turé, carqueja, fedegoso, chapéu de couro, congonha... Comendo beldroega, broto de aboboreira, miolo de gueroba, frango com pequi, angu com quiabo, quibebe, inhame com leite... Assistindo a boiada passar... Vendo o trem de ferro apontar na boca de um corte e sumir na outra carregando boi, muquiça e gente... Vendo a enchente destruir as roças de arroz e milho do pai... Arrancando mandioca no muque pra farinha e o polvilho do ano... Fazendo paçoca de carne seca e socando arroz e café no monjolo de pé... Indo pra escola a uma légua de distância no cavalinho da orelha murcha... Convivendo e conversando com João Pelota, Zé Rosa, João Garrote, João Geada, Zé Ficiano, Zé Pelotin ha, João Garrotinho, João do Zé Ficiano, Zeca do Zé Ficiano, Zé Albino, João Miguel, Zé do Orico, Zé Taviano, João Vergina, Zé Cota, Zé Ramo, João do João Vergina, Severo... Só podia dar no que deu, no meio de tantos zés e joães : um escrevedor de coisas da roça.

Eurico de Andrade - uma homenagem à cultura brasileira!